3 de jan. de 2012

O Instituto Médico Legal


O sol clareava o dia quando Fátima entrou no IML com o mesmo tédio de toda segunda-feira. Tudo era sempre igual. A calçada contava com mais ou menos o mesmo número de pessoas. Ela não percebeu um homem limpando uma lágrima que teimava não cair da ponta do nariz. Nem notou que dois adolescentes espantados sugavam cigarros, inflando os pulmões com o máximo de fumaça. Já se acostumara aos prantos escandalosos de velhas prematuras que aguardavam as sirenes alarmadas das ambulâncias e dos rabecões. Quando veio trabalhar pela primeira vez, sua chefe lhe advertiu: “Aprenda a se guardar, minha filha, senão você fica doida”.

Antes de subir os cinco degraus que separavam o prédio do solo, veio no ônibus sem cogitar no trabalho. Pensava no sol que lhe bronzeou o corpo no domingo. Gostava de reviver a praia e o susto que veio com o beijo molhado de seu pai que saiu do mar tiritando de frio. Aquelas lágrimas azedas de velhas que esperavam a liberação dos corpos já não lhe incomodavam. Sequer dava conta que o granito onde pisava estava encardido de uma cera mal espalhada. Não reparava as teias de aranha que se formavam nos cantos das salas e nem no barulho dos inúteis ventiladores de teto que só dispersavam a tristeza dos vivos chorando seus mortos. Ela sabia que essas percepções só tem quem vai àquele depósito de defuntos pela primeira vez e, despreparado, não consegue se distanciar do ambiente tão sinistramente contaminado de desgraça.

Fátima sequer sentia o cheiro de formol, sempre abundante. Sua rotina era um enfado. Todos os dias, vestia um jaleco branco, que parecia tingindo de um amarelo pálido. Assinava o nome num livro preto, que o manuseio displicente de outros funcionários deixou o dorso esgarçado. Quando apertava a caneta firmando o ponto final da assinatura, sentia orgulho; nunca se atrasava. Conviver com a morte já era parte da sua vida. Mecanicamente dirigia-se ao anfiteatro do necrotério, onde primeiro despejavam os corpos, e começava a trabalhar. Contrataram-lhe para lavar e preparar defuntos para o médico legista fazer as autópsias.


Porém, antes de principiar sua rotina, gostava de sentar-se por alguns segundos. Olhava ao redor como uma leoa que delimita o seu território. Sua sala de trabalho era apertada, fria e solitária. Nas próximas seis horas conviveria com as maiores desgraças que os seres vivos conseguem produzir. Veria os policiais da Civil jogarem restos de gente sobre as mesas de pedra. Chegavam decapitados em acidentes de trânsito, meninos carbonizados em fios de alta tensão, mutilados de da guerra do tráfico; alguns já apodrecidos. Seu mundo era tão tenebroso como o inferno de Dante.

Fátima iniciava aguando os corpos que jaziam nas mesas de pedra negra. As pequenas valas, por onde corriam as águas, vez por outra entupiam com pedaços de carne que se desprendiam e que ela desobstruía sem nojo. Como sempre havia muitos corpos esperando a higiene derradeira, Fátima gostava de cumprir sua rotina sem pressão. “Um de cada vez”, dizia antes de girar a torneira.

Mas nem sempre foi assim. No primeiro dia de trabalho, vomitou várias vezes e chorou sem dormir uma noite inteira. O conselho de sua instrutora não ajudou. Deitada, contemplou os olhos abertos de uma jovem estuprada e morta com um fio elétrico ao redor do pescoço. Deixou de apagar as luzes de seu quarto para não continuar na companhia de outros olhos assombrosos, não queria ver bocas quebradas ou intestinos expostos. Mas, acostuma-se com tudo na vida e depois de alguns meses, Fátima só pensava em terminar sua tarefa; aprendera a distanciar-se das carnes, como faz o açougueiro ao esquartejar o boi da refeição.

Naquela segunda-feira, correu a vista sobre todos defuntos, sem qualquer sentimento. Nenhum deles estava coberto. Rapidamente contou oito. “O final de semana não foi tão ruim”, pensou. “Pouca gente morreu”, falou baixinho como se não quisesse perturbar os cadáveres. Fátima não se importava mais de saber como aquelas pessoas faleceram. Já não ouvia os gritos dos que carpiam nos corredores. Só se chateava quando o estrago era muito grande nos “presuntos” – jargão que detestava, mesmo que fosse obrigada a escutar dos policiais, quando se referiam aos mortos. Alguns chegavam tão cheios de larvas, tão decompostos, que demandavam o dobro do tempo para serem lavados. Sem asco, reclamava das desgraças quando lia ou comia na lanchonete no final do corredor, porque faziam perder sua folga.

Mesmo com um fim-de-semana normal não podia vacilar. Levantou-se falando: “É melhor começar logo”. Enquanto vestia luvas e máscara, percebeu os ponteiros das geladeiras muito baixos. Elas estavam frias demais. Notou também que as gavetas já estavam ocupadas com cinco mortos. Antônia, que cumprira o plantão da madrugada, já adiantara o serviço. “Graças a Deus, cinco a menos”, refletiu com um suspiro de alívio.

Fátima criara seu próprio método de trabalho. Iniciava sempre pela mesa da esquerda. Para sua sorte, o primeiro “defunto” não estava nada sujo. Era uma mulher de trinta e poucos anos. Seu corpo esguio resplandecia na brancura da morte. Fátima sequer notou sangue coalhado por seu corpo. Não era bonita, mas o leve sorriso dava-lhe um aspecto feliz; aparentava pouco mais de trinta anos e os cabelos fortemente oxigenados assemelhavam-se a palhas de milho. Enquanto Fátima esperava o jato d’água para começar a higiene final, chegou o legista de plantão, Dr. André Carvalho. Calado, veio em sua direção, também indiferente ao horror daquele recinto. Carregava um formulário já preenchido. Era o Boletim de Ocorrência da loira. Leu um nome em voz alta, como um professor que faz chamada na classe. Queria saber qual a mesa onde jazia Carla Lima. Ao mencionar o número da mesa, Fátima, secamente respondeu:

- Aqui, mirando o rosto da morta com cuidado. Ainda perguntou:

- A filha do fazendeiro Carlos Lima foi assassinada?
Sem responder, Dr. André colocou-se ao lado da mesa, indagando se já terminara. Fátima respondeu que ainda estava no início. O médico disse que não precisava se preocupar. E foi respondendo a pergunta como a um repórter policial qualquer:

- Foi morta por seu amante enquanto secava os cabelos no salão de beleza.

Quem quisesse saber os detalhes do crime bastaria comprar o jornal da manhã. A manchete trazia em letras garrafais: “Assassinada a Socialite Carla Lima”. Naquela altura toda a cidade já tomara conhecimento que Ramiro Dias correu até o salão de beleza na hora em que soube que sua mulher mantinha um romance com um rapaz. Sacou do revólver e com um só tiro acertou-lhe o olho esquerdo. Antes de piscar, Carla caiu morta. Os jornalistas se esbaldaram com os detalhes. O estampido deu início a um pandemônio. Cabeleireiros e manicuras correram gritando, senhoras idosas desmaiaram com os cabelos tingidos pela metade, algumas sentaram na calçada, cobertas apenas por um roupão de seda branco. O crime passional deixou a cidade em estado de choque. A fotografia do Diário mostrava Carla Lima ainda sentada debaixo de um secador de cabelos com a cabeça curvada para frente e uma legenda: “Bastou um tiro mortal. Parece dormir”.

Dr. André mexeu no corpo com a ponta de um estilete e falou como se desse satisfação à sua auxiliar.

- A família está pressionando toda a equipe para que a gente libere o corpo logo. Precisamos nos apressar.

Fátima fechou a torneira que mal respingou nos cabelos da morta.

- Ela está limpinha, respondeu.

- Dá para entregar o corpo assim mesmo, julgou o legista.

Todo aquele drama nada significava a nenhum dos dois. Não se importavam com essas novelas que transformam a vida num folhetim barato. Ela afastou-se com um leve sorriso de alívio e ele não percebeu seu descaso: a máscara de trabalho lhe encobria os sentimentos. “Uma a menos.”

Minutos depois, quatro pessoas da família entraram com dois advogados, acompanhados por um sisudo funcionário da funerária que caminhava dois passos mais atrás. Os membros da família abriram uma valise marrom, tiraram algumas peças de roupa e começaram a vestir a morta. Não conseguiram, devido ao “rigor mortis”: os braços não se dobravam. Pediram ajuda ao agente funerário que se aproximou sem dizer nada. Experiente, ele cortou as costas das roupas e rapidamente a cobriu com suas vestes caras. Terminaram, e o grupo se espremeu para espalhar flores amarelas e brancas por todo o caixão. Os parentes choravam alto, os advogados e o agente funerário, calados, contemplavam ao lado com olhar profissional.

Fátima viu que não dava para continuar com seu trabalho. Era gente demais.

- “Dão licença”, pediu, afastando-se.

Ainda esperou distante três passos. Avaliou o movimento concluiu que dava para preencher seu tempo com outra atividade.

-Essas geladeiras estão quebradas? Perguntou, querendo mostrar liderança na sala do necrotério.

- Não, respondeu displicentemente, Dr. André.

Ele mesmo ordenara que baixassem a temperatura. Com os últimos cortes de energia, não queria que os indigentes apodrecessem.

- Quantos graus? Inquiriu, aceitando a interferência da auxiliar.

-Treze negativos, ela respondeu querendo mostrar conhecimento técnico.

Naquele momento, o caixão da famosa sumiu pelo corredor.

As geladeiras não podiam ficar abaixo de dez graus negativos. Nessa temperatura, os tecidos se congelam e petrificam, e a pele acaba rachando. Se mais tarde a faculdade de medicina precisasse de defuntos para as aulas de anatomia, o Instituto não teria como ajudar.

- Pode aumentar um pouco mais a temperatura, ordenou, querendo patentear que um médico, mesmo de gente morta, vale mais que uma simples lavadeira de restos humanos.

Antes de ajustar o termostato, Fátima resolveu investigar o estado em que se encontravam os cadáveres. Abriu a primeira gaveta, que deslizou sem muita dificuldade. Espantou-se. Um homem jazia recoberto com uma fina camada de neve, com um rosto muito familiar. Sem querer, engasgou com seu próprio gritou: “Eu o conheço”. O verniz gelado que recobria o rosto não escondia, era o Dantas! “Meu Deus”, exclamou baixinho, porém alto o suficiente para chamar a atenção do médico que terminava com as formalidades de liberação da famosa.

- “Aconteceu alguma coisa?”, perguntou o legista.

- “Nada “, respondeu Fátima, virando o rosto contra o aço inoxidável.

Temia não conseguir disfarçar seu pavor. Há momentos em que nenhuma máscara esconde sentimentos que escapam pelos olhos.

Como não reconhecê-lo? Dantas fora seu namorado. Verdade que num relacionamento rápido e sem muito compromisso, porém nunca se esqueceria daquela fisionomia; e jamais imaginou achá-lo ali, congelado.

Fátima conheceu Dantas em sua igreja evangélica. A princípio, agradou-se de seu olhar triste. A curvatura oblíqua dos olhos dava-lhe um semblante melancólico, embora Dantas se mostrasse sempre bem humorado. Iniciava a conversa como se fosse contar uma anedota, deixando as pessoas ansiosas pelo final surpreendente. O jogo da sedução entre os dois começou no dia que voltavam do culto. No longo trajeto de ônibus, Dantas comentou o sermão do pastor. Ele avaliava a mensagem dominical misturando assuntos espirituais com uma profunda análise dos poderes econômicos que manipulam os políticos. A sinceridade com que falava, chamou a atenção de Fátima. Quando desceram no ponto em frente de sua casa, ela aceitou marcarem para se encontrar dois dias depois, no fim do expediente. Naquele começo de noite, compenetrado, Dantas pediu, ela aceitou, e começaram a namorar. Mas Fátima nunca se empolgou muito com tudo aquilo. Algo lhe incomodava. O romance durou meros vinte e cinco dias e a admiração inicial nunca evoluiu para uma paixão genuína.

Sempre quando terminava o turno no IML, Fátima voltava para casa esgotada. Era um trabalho que lhe anestesiava os sentimentos, mas moia-lhe os ossos. Um dia chegou a pensar que desaprendera de amar; a vida lhe endureceu.

Nos poucos dias que se encontraram, Fátima descobriu que Dantas fora um preso político e sofrera torturas. Durante a ditadura, ele se destacou como líder do sindicato dos Professores Universitários, até a madrugada em que um jipe do exército o raptou. Seu mundo ruiu depois da fatídica reunião secreta na casa de uma dos sindicalistas; descobertos, todos foram levados para serem interrogados sobre outros colegas considerados subversivos. Ele sabia de verdades importantes e seus inquisidores precisavam obter todas informações. Ele apanhou muito em intermináveis sessões de tortura porque recusava-se a delatar alguém.

Embora nunca contasse seus sofrimentos, Fátima detectou que as torturas o deixaram meio perdido. Dantas mantinha raciocínios lógicos, concatenava bem as idéias, mas não conseguia manter-se coerente por muito tempo. Quando ela queria aprender mais sobre o seu passado, saber detalhes, ele mudava de assunto, irritava-se e, muitas vezes, chorava compulsivamente. Um dia, Fátima o flagrou falando sozinho. Meio sem jeito, alegou que dialogava com amigos já mortos, misturando fatos da última semana da igreja com acontecimentos da infância.

Fátima começou a ter medo dele. Inquieta, tentou investigar mais sobre sua família, mas não encontrou nenhum parente. Foi aí que resolveu terminar com o relacionamento.

- Esse Dantas é um doido, confidenciou a uma amiga.
De repente, aquela rápida paixão foi substituída pelo desdém. Andar ao lado de Dantas irritava Fátima. E com a mesma frieza com que encarava seus afazeres mórbidos, terminou o namoro.

-Por favor, não me procure, não me telefone e não venha me esperar na porta do meu emprego. Não posso namorar você, precisamos acabar hoje. Foi assim, que severa e fria, Fátima se despediu de Dantas numa tarde de sábado.

Desde aquele rompimento nunca mais soube qualquer notícia dele. Dantas sumiu também da igreja. Como ela andava distante de seus poucos amigos, ninguém comentou ou perguntou pelo paradeiro do ex-namorado. Agora, ao lado de uma gaveta metálica, ela tentava reconstruir o passado. Queria entender o sumiço inexplicável dele. Mas, experimentava uma ponta de culpa ao recordar-se de sua ríspida despedida. Incomodada de ter que contemplá-lo com a metade da cabeça afundada, sentiu-se tonta quando percebeu os olhos de Dantas mirando para lados opostos.

Fátima fechou a gaveta; tentou voltar ao trabalho. Perdeu noção do tempo. Precisava lavar o próximo corpo. Contudo, sentimentos novos lhe invadiram a mente. Não conseguia se controlar. As pernas bambearam, as mãos tremeram. Tentou manter a mesma calma dos outros dias, queria vestir-se novamente com a couraça da indiferença. Tentou se lembrar do descaso que sentiu quando chegou o corpo de uma velha que se parecia com sua avó. “Nunca me abalo com nada”, monologou. “Nunca sinto nada, nem carne podre me choca”, repetia, querendo convencer-se de alguma verdade que minorasse sua insegurança. Os pensamentos brotavam descontrolados: “Não chorei quando trouxeram aquela criança achada no esgoto. Questionava-se como uma juíza: ”Se não me abalei naquele dia tão pavoroso, porque o corpo deste homem me deixa assim?”.

Já não se ouvia o choro dos grã-finos que vieram buscar a loira de cabelos oxigenados. Fátima se sentia só. O olhar vesgo de seu ex-namorado a perseguia. Fez perguntas que nunca mais fizera sobre ninguém: “O que aconteceu com ele? Como morreu?” Movida por uma curiosidade nova, leu o prontuário pendurado na alça da gaveta. Arrepiou-se com o item número cinco, o da causa do óbito: Atropelamento.

Abalada, terminou o serviço do dia, lavou os outros corpos que aguardavam asseio. Naquela tarde, seu coração martelou-lhe sem tréguas. A cada momento olhava para o termostato da geladeira. Seus olhos a traíam, pareciam encantados com a alça inoxidável da gaveta. “Meu Deus, o Dantas!”, repetia entre suspiros. Já se familiarizara com todos procedimentos do Instituto. Como indigente, ele ficaria ali por mais cinco dias úteis até que alguém da família reclamasse o corpo. Não havendo reconhecimento, seria enterrado numa vala comum. Fátima sabia que tinha de encontrar alguém.

Naquela noite, voltou para casa tão triste que seus olhos pesavam a cabeça, cabisbaixa, percorreu o trajeto entre a sala e o quarto. Enquanto tomava banho, um choro espontâneo fez brotar lágrimas ardidas, mais quentes que a água morna que banhava seu corpo. “Por que estou assim?”, repreendia a si mesma. Tentava se consolar, falando alto: “O Dantas é só mais um”. E enquanto se perdia nesses solilóquios, afundava em tristeza.

No dia seguinte, ao chegar no IML, achou uma mulher muito parecida com sua irmã, se entreolharam e a mulher tentou esconder o rosto no peito de um homem bem mais velho, que supôs ser o pai. Percebeu que a porta da frente rangia um barulho parecido com o choro de uma menina que se abraçava nas pernas da mãe. Aquelas sensações eram novas, há meses não notava o rosto das pessoas na ante-sala do Instituto. Caminhou rumo à secretaria e pela primeira vez, incomodou-se com as luzes do instituto que, devido a fina camada de poeira, não brilhavam. Só naquele dia atinou porque o ambiente do Instituto mantinha-se esmaecido e cansado.

No guichê, perguntou se sabiam qual equipe do resgate socorreu o morto da gaveta 212. A resposta da mocinha sonolenta e antipática foi outra:

-Quando o resgate chegou, ele já estava morto há duas horas. Fátima sentiu-se desestimulada, não seria ali onde se informaria sobre o que matou seu ex-namorado.

Resolveu recorrer ao pastor da igreja sem mencionar nada sobre a morte de Dantas, só indagou sobre seu paradeiro. O pastor não se lembrava de quem se tratava. Sequer lembrava do rapaz. Fátima insistiu, descrevendo Dantas como um homem meio abobalhado. Nada!

Três dias depois que abrira aquela gaveta, três longos dias depois de querer descobrir mais sobre Dantas, Fátima criou coragem. Puxou pela alça da geladeira para rever os restos do namorado que conheceu tão pouco. Era meio da semana e havia pouco trabalho. Na medida em que a gaveta deslizou e o corpo surgiu, o mesmo tremor dos primeiros dias mexeu com os músculos de suas pernas. Fátima não conseguia manter-se em pé, precisou apoiar-se numa cadeira para continuar mirando o rosto dele.

Respirou fundo, conseguiu refazer-se e ficou olhando-o de perto. “Nossa”, falou entre os dentes, “o traumatismo craniano foi violento”. Caminhou ao redor como quem avalia um mapa e indignou-se com o trabalho da Antônia. Encontrou restos de pedras encravadas nas costas, sangue escurecido nas dobras das pernas e até algumas lascas de madeira encravadas na cabeça. Com um suspiro continuou falando sozinha. Inconscientemente queria ser ouvida pelo próprio Dantas: “Eu vou lavar você, viu?”.

Colocou uma maca sob o corpo gelado e retirou Dantas de dentro do seu túmulo provisório e frio. Puxou, até a mesa e logo esguichou água para derreter o gelo mais depressa. Queria começar a limpá-lo imediatamente. Enquanto a água jorrava, mal conseguia conter a tremedeira que vinha lá de dentro da alma, alastrando-se por todo o seu corpo. Fátima nunca sentira nenhuma atração física pelo Dantas e estranhou que o tivesse nu em suas mãos. Todavia, ver seu sexo murcho só aumentava sua dor infinita por ele.

O corpo descongelou e ela começou a lavar-lhe. À medida que a água marulhava, nasceu um fiapo de alegria pelo dia em que os dois precisaram correram da chuva. Caía uma tempestade e Dantas puxou Fátima pela mão para fugirem para dentro de um bar. Naquele dia, não percebera qualquer detalhe de suas mãos. Agora, enquanto deixava a água correr entre os dedos arroxeados, Fátima soltou um choro que arranhou sua garganta como um espinho. Apalpou as mãos de Dantas e não percebeu nenhum calo. O único que encontrou estava no dedo indicador da mão direita. Calo de quem escreve muito com giz.

Acariciou o calo com a água e imaginou uma sala de aula com o Dantas escrevendo no quadro negro diante de muitos alunos. “O que este homem já escreveu?”, pensou. “O que será que ele mais gostava de ensinar? Será que algum de seus alunos está se lembrando dele neste exato momento?” Falava agora tão alto que já dava para ser ouvida se estivesse rodeada de vivos e não de cadáveres. “Eu o considerei um doido, mas não deve ter sido sempre doido. Por que fui tão insensível?”.

Enquanto limpava seus dedos, notou que havia marcas de queimaduras na região dos genitais. Largou a mangueira ainda aberta, e quase encostou o rosto, queria certificar-se mais de perto. Tocou a virilha, levantou as pernas e afastou os órgãos sexuais. Dantas estava cheio de cicatrizes feias. “Meu Deus!”, exclamou. Lembrou-se que os interrogatórios da ditadura, para serem eficazes, vinham sempre acompanhados de choques elétricos, queimaduras de cigarros e mutilações com alicates. Fátima sabia que os torturadores dobravam os presos mais obstinados colocando eletrodos no ureter. Sabia que muitas mulheres morreram com canos enfiados na vagina. Já lera que pinças eram presas no saco escrotal e pênis dos homens para que o choque se misturasse à dor do beliscão. “Dantas deve ter resistido muitos dias, torturas atrozes”, monologava. As marcas eram grotescas, mal curadas.

O choro de Fátima crescia e agora vinha compulsivo. Sentiu remorsos por haver tratado seu ex-namorado com tamanha indiferença. De repente, lembrou-se do que acontecera com Cristo. Sabia de uma mulher que derramou perfume sobre o corpo de Jesus. Não conhecia detalhes da história, mas recordava-se que Jesus a elogiara dizendo que preparava o seu corpo para sua morte.

Abatida por uma tristeza profunda, Fátima ainda pensou: “Lá, ela preparava um corpo para a morte, aqui eu preparo um corpo já morto”. Aos soluços completou: “O amor dela foi maior que o meu”.

Fechou a torneira, empurrou o corpo de volta para maca, devolveu ao gavetão e saiu marchando como um soldado. Atravessou a rua e entrou numa da muitas casas funerárias que ficam ao redor do IML. Sentou-se esperando alguém lhe ajudar. Ainda vestia o uniforme amarelado do trabalho.

“Vou ser melhor para ele na morte do que fui em vida”, pensou orgulhosa. Comprou um caixão e uma sepultura que lhe custaram a metade do salário. Negociou o pagamento com dois cheques para trinta e quarenta e cinco dias. O caixão não era de luxo. “Não vou deixar que o Dantas seja enterrado no de alumínio que os indigentes são carregados para serem despejados na vala comum”.

No dia seguinte, às duas horas da tarde, sentada num carro funerário, Fátima levou sozinha o corpo de Dantas para sua última moradia. Ela vestia preto e chorava baixinho. Enquanto os coveiros desciam o corpo do seu ex-namorado, ouvia o tamborilar de uma chuvinha rala cair sobre o caixão, única música daquele dia triste. Ainda hoje ele descansa no Cemitério Evangelista São João, na rua Três, ala Dezesseis, cova, número 1964. Na lápide, lê-se um simples epitáfio: “Dantas – que só aprendi a amar tarde demais”. [Conto de Ricardo Gondim]

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Obrigado pelo seu comentário! Saulo Souza